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segunda-feira, 18 de maio de 2009

RESPONSABILIDADE, COMPROMETIMENTO E AUTODISCIPLINA

Retirado de: Libera - No. 137 - Ano 17 - JAN-JUN/2007 - FARJ - Federação Anarquista do Rio de Janeiro

A questão da responsabilidade, do comprometimento e da autodisciplina é motivo de debate
e de divergências no chamado “meio libertário”. Desenvolvemos nas próximas linhas, um pouco do que pensamos sobre isso, colocando nossas posições. Ideal Peres, já há algum tempo, afirmou: “Um sujeito que tem uma Ética Libertária sabe por que está lutando e consegue explicar os motivos ideológicos da luta, tem compromissos e autodisciplina para levar a cabo as tarefas assumidas”.

Ele expressou, em uma só frase, uma série de opiniões de suma importância para nós. Enfatizava ele, antes de tudo, uma importância da consciência do militante com relação aos motivos da luta. O militante anarquista é um sujeito que participaativamente de todas as discussões que se dão no âmbito da organização e conhece o contexto em que está lutando. Dele, espera-se que se nvolva com as discussões que acontecem, colocando-se, discutindo as melhores saídas para as questões apresentadas e interferindo nos rumos táticos e estratégicos adotados pela organização. É por isso que todos os militantes devem ter a clareza do por que se luta, contra o quê se luta e em favor de quê se luta.

Quando Ideal Peres falava de compromisso e autodisciplina, ele dizia fundamentalmente um compromisso individual para com as decisões coletivas. Mas como funciona isso? É muito comum em organizações que se dizem horizontais e apartidárias, um descompromisso muito grande dos militantes com relação às questões de compromisso e autodisciplina. Um exemplo disso é a grande quantidade de pessoas que freqüentam reuniões (de grupos que são relativamente abertos), dando opiniões sobre assuntos que desconhecem ou assumindo responsabilidades, sabendo que poderão não cumpri-las. É muito comum que essas pessoas não mais apareçam nas próximas reuniões e nem cumpram com aquilo que prometeram, alegando que não puderam, por um motivo ou por outro, ou nem mesmo dando satisfação ao coletivo.

O pior de tudo é que muitas dessas pessoas, ao serem cobradas, sentem-se ainda vítimas de algum tipo de autoritarismo. Para nós, o que acontece é que há uma inversão de valores ao se julgar determinado tipo de comportamento em que o autoritário – ou seja, aquele que se comprometeu com algo perante o coletivo e não cumpre – julga-se vítima do autoritarismo.

O “compromisso e a autodisciplina para levar a cabo as tarefas assumidas” ressaltados por Ideal Peres fogem radicalmente do modelo apresentado acima. Neste tipo de atitude de compromisso e autodisciplina, concordamos com Ideal que, dentro da organização, deve haver um grande espaço para todas as discussões e todos os pontos de vista devem ser analisados com todo o cuidado e, como dissemos acima, ter o mesmo “peso” nas tomadas de decisão da organização.

Nessas reuniões, são deliberadas todas as atividades que a organização fará, o que significa dizer que seus membros as realizarão. Afi nal, a organização não faz nada por si só. Ela não tem cérebro, braços e pernas para poder executar as atividades que são deliberadas em seu seio. É por isso que todas as atividades que se deliberar e que forem de responsabilidade da organização terão, de um jeito ou de outro, de ser executadas pelos seus membros. Era sobre isso que Bakunin se posicionava, ainda no século 19, discutindo a questão da disciplina:

“[...] certa disciplina, não automática, mas voluntária e refl etida, estando perfeitamente em cordo com a liberdade dos indivíduos, foi e será necessária, sempre que muitos indivíduos, livremente unidos, empreendam um trabalho ou uma ação coletiva qualquer. Esta disciplina não é mais do que a concordância voluntária e refletida de todos os esforços individuais para um fim comum. No momento da ação, no meio da luta, os papéis dividem-se naturalmente, de acordo com as aptidões de cada um, apreciadas e julgadas por toda a coletividade: uns dirigem e ordenam, outros executam ordens. Mas nenhuma função se petrifi ca, nem se fixa e não fica irrevogavelmente ligada a qualquer pessoa.

Os níveis e a promoção hierárquica não existem, de modo que o comandante de ontem pode ser o subalterno de hoje.

Cabe aqui abrir um parêntese para dizer que, da mesma forma que não existe um “espírito da organização” que resolve problemas e que desenvolve as tarefas. É fundamental, no momento em que as decisões forem tomadas, que se dividam as responsabilidades, ficando os membros formalmente responsáveis por sua execução. Acreditamos na necessidade de se dividir as atividades entre os militantes, buscando sempre um modelo que distribua bem essas atividades e que fuja da concentração de tarefas sobre os membros mais ativos ou capazes. A partir do momento em que um militante assume uma ou mais tarefas para com a organização, ele tem a obrigação de realizá-la e uma grande responsabilidade perante o grupo com relação a essa(s) tarefa(s). É a relação de compromisso que o militante assume com a organização. Como as discussões no seio da organização são amplamente democráticas e ninguém assume as tarefas porque é obrigado, cada compromisso é um compromisso assumido por iniciativa do próprio militante, sendo de sua completa responsabilidade.

Não acreditamos que a cobrança, por parte da organização, das responsabilidades assumidas pelo militante seja algo autoritário. Ela deve existir e, se acontecer dessa irresponsabilidade ou falta de compromisso ser constante, deve haver uma conversa franca dos outros militantes com ele, a fi m de resolver a questão e não prejudicar os trabalhos da organização.

A autodisciplina é o motor da organização autogestionária. Como em uma organização desse tipo – o que é o nosso caso na FARJ – não há chefes que “cobram” os funcionários ou a base para a execução das tarefas, cada um que assume uma responsabilidade deve ter disciplina o suficiente para executá-la. Da mesma forma, quando a organização etermina uma linha a seguir ou algo a se realizar, é a disciplina individual que fará com que aquilo que se deliberou coletivamente se realize. Não deve haver necessidade de cobrança, pois se espera que cada um no grupo cobre-se para a realização das tarefas determinadas na organização, mas o indivíduo deve satisfação à organização, devendo informá-la do andamento das atividades sob sua responsabilidade e quando não as realizar, explicar ao coletivo o motivo, podendo ser cobrado por isso. Quando há problemas no andamento das atividades de um membro ou outro, a organização pode “cobrar” os responsáveis pelo andamento das atividades, também com o objetivo de não prejudicar os trabalhos e a luta. Obviamente que a forma dessa cobrança deve estar dentro dos critérios de respeito mútuo e da ética anarquista.

Errico Malatesta, ao discutir a questão da disciplina, em 1920, tratou-a da seguinte forma: “Disciplina: eis a grande palavra da qual se servem para paralisar a vontade dos trabalhadores conscientes. Nós também pedimos disciplina, porque, sem entendimento, sem coordenação dos esforçosde cada um para uma ação comum e simultânea, a vitória não é materialmente possível. Mas a disciplina não deve ser uma disciplina servil, uma devoção cega aos chefes, uma obediência àquele que sempre diz para não se mexer. A disciplina revolucionária é a coerência com as idéias aceitas, a fi delidade aos compromissos assumidos, é se sentir obrigado a partilhar o trabalho e os riscos com os companheiros de luta.”² (grifos nossos)

É relevante observarmos os comentários de Malatesta, concordando que essa disciplina e essa cobrança não devem seguir o modelo autoritário, tanto de opressão dos membros do grupo quanto pela forma dessas cobranças, que, conforme mencionamos, também devem considerar o respeito e a ética entre os membros do grupo. É uma grande preocupação diferenciarmos a autodisciplina que aqui pregamos da disciplina militar, exploratória e opressora em sua essência e que, de nosso ponto de vista, não segue rumos diferentes do que os outros autoritarismos que bem conhecemos.

Esses elementos, hoje e sempre, são fundamentais para a realização das atividades de qualquer organização que se diga séria e que tenha objetivos de transformação social. Ressaltamos que o nosso trabalho não pode ser algo que se dê pontualmente e que podemos fazer às vezes, quando nos der vontade. O compromisso que estabelecemos, como organização, exige que tenhamos responsabilidade pela constância de nossas ações. Isso muitas vezes é duro, pois as batalhas são, muitas vezes, perdidas. É a vontade e o compromisso militante que farão com que caminhemos dia após dia, para o desenvolvimento das atividades da organização e para que possamos superar os obstáculos e preparar terreno para nossos objetivos de longo prazo. É desta maneira que entendemos poder caminhar rumo à liberdade.

A FARJ busca fazer desses três elementos – responsabilidade, comprometimento e autodisciplina – fortes característica de nossa organização. Este artigo é uma versão reduzida de “Reflexões sobre o Comprometimento, a Responsabilidade e a Autodisciplina”, publicado em nossa revista Protesta!, número 4, de 2007.

Notas:

1 Mikhail Bakunin. Império Knuto-Germânico.
Retirado de Frank Mintz. Bakunin: críctica y acción.
Buenos Aires: Colección Utopia Libertária pp. 74-75.

2 Errico Malatesta. Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortes p. 24.

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